A religião sem razão
Apesar de criticar a intolerância religiosa, Voltaire acredita que a crença é importante para a sociedade. Mas a aceitação de seus dogmas sem questionamento levou o homem ao fanatismo, à barbárie e à destruição
“A crença forte só prova a sua força, não a verdade daquilo em que se crê” NIETZSCHE
Muitas pessoas concordam com a ideia propagada de que “religião não se discute”. De fato, não se discute a convicção de cada um, mas é possível entender o significado das religiões e da busca constante do sentido da vida pelo ser humano. Com base em registros históricos, sabe-se que o ser humano se relaciona com a dimensão divina há milhares de anos.
No entanto, o relacionamento humano com o divino já proporcionou capítulos de horror ao longo da história. E um dos mais intrigantes e sanguinários ocorreu na Europa, mais precisamente na França, entre os séculos XVI e XVIII. Nessa época, arrogava-se normalmente o direito de atormentar homens por suas crenças. Dentre as vítimas, os mais dignos de pena eram seguramente os protestantes.
François-Marie Arouet, o filósofo francês conhecido como Voltaire (16941778) vivenciou este período e alargou inúmeras reflexões sobre a tolerância. Humanista liberal, defensor da justiça, estabelece um combate à intolerância e ao fanatismo, pela análise de vários exemplos de perseguições.
O filósofo condena claramente as lutas religiosas quando afirma que “esta horrível discórdia, que dura há tantos séculos, constitui a lição bem expressiva que devemos perdoar-nos mutuamente os nossos erros; a discórdia é o grande mal do gênero humano e a tolerância seu único remédio” (Dicionário filosófico, 1973, p.298). Mais que uma reflexão analítica, a participação de Voltaire na construção da tolerância como valor moral se deve à defesa radical da condição humana. Ele diz que devemos nos tolerar porque somos fracos, inconsequentes e sujeitos ao erro e à mutabilidade.
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Aprovação do Estatuto Social da Companhia de Jesus, obra de Johann Handke. Voltaire criticava as religiões que pareciam ter como único objetivo garantir um trono a seus pontífces, ainda que fundado na miséria ou no sangue do povo
O ponto de partida escolhido para sua campanha contra a perseguição religiosa foi o ocorrido na noite de 13 de outubro de 1761, em Toulouse, em que um pai, juntamente com sua família, é condenado pelo enforcamento do próprio filho que apenas pretendera converter-se ao catolicismo numa terra de católicos, contra a vontade de um pai calvinista. Tempos depois, este homem é torturado, quebrado vivo, estrangulado e atirado numa fogueira ardente Supostamente, aos olhos do parlamento local, fazia-se justiça ao assassino.
Infelizmente este caso não difere de vários outros casos ocorridos, nem sequer pelo fato, de anos mais tarde, a França ter reconhecido a inocência do condenado Jean Calas, um bom homem, trabalhador e respeitado pela comunidade. O que se tornou digno de registro não foi exclusivamente o erro da justiça ou o horror na prática de tortura, mas aquilo que motivou a condenação de um homem inocente: a intolerância religiosa. De todas as religiões, a cristã, segundo Voltaire, é a que deveria inspirar mais tolerância, embora os cristãos tenham sido os mais intolerantes de todos os homens. Todo o empenho é para que haja tolerância religiosa no ímpeto da Cristandade, e que os diferentes cristãos saibam tolerar-se uns aos outros.
Durante o exílio na Inglaterra, Voltaire ficara admirado com o pluralismo religioso ali instituído, em contraste com a situação francesa. Alguns anos antes do seu nascimento, a religião reformada era proibida no reino da França, e foi somente em 1787 que Luís XVI decidiu promulgar um “edital de tolerância” em favor dos súditos que não pertenciam à religião católica. É neste ambiente de intolerância religiosa que Voltaire cresceu, alimentando uma profunda antipatia pelo fanatismo. Seu grande objetivo apontava para um pluralismo religioso, argumentando que, quanto mais seitas houver, menos perigosa cada uma será, pois a multiplicidade as enfraquece: “Se entre nós houver duas religiões, hão de cortar-se o pescoço; se houver trinta, viverão em paz”.
O empenho é para que haja tolerância no ímpeto da Cristandade, e que os diferentes cristãos saibam tolerar-se uns aos outros
Na imagem, a execução de um inca. Com a descoberta da América, os espanhóis proibiam as religiões nativas e mpuseram o cristianismo. A intolerância levou a humanidade a cometer crimes bárbaros
Apesar de seus ataques muitas vezes violentos contra algumas religiões, Voltaire não era ateu. O filósofo detestava o ateísmo e culpava o dogmatismo cristão e a superstição de muitos crentes pelo aumento da quantidade de ateus. Ele entendia que era melhor o ser humano ser subjugado por todas as superstições possíveis, desde que não causasse barbárie alguma, do que viver sem religião. O homem sempre teve a necessidade de um freio e, mesmo que tenha sido ridículo fazer determinados sacrifícios, era mais plausível e útil adorar essas imagens fantasiosas da divindade do que viver sem acreditar em nada. “Um ateu polêmico, violento e robusto seria um flagelo tão funesto quanto um supersticioso sanguinário” (Tratado sobre a tolerância).
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FREIO DIVINO
A religião é necessária em qualquer lugar que houver uma sociedade estabelecida, pois enquanto as leis reprimem os crimes conhecidos, de um lado, do outro a religião se encarrega dos crimes secretos. Quando o homem não tem noções claras e sadias da divindade, as ideias falsas ocupam seu lugar – como durante épocas infelizes que se fazia comércio com moeda falsa na falta da verdadeira – e temem cometer qualquer ato hediondo com medo de uma punição divina.
Se levarmos em conta o fato da necessidade da religião, do homem reverenciar o sobrenatural para buscar compreensões e um sentido à própria vida, qual é o motivo de se lançar ao fanatismo que leva à destruição, à morte e à intolerância ao próximo? “Um homem que recebe sua religião sem exame não difere de um boi que atrelam”. (O túmulo do fanatismo). Examinar, questionar, é um dever de qualquer um que respeita a razão. Seguir uma crença somente porque é a crença dos pais seria um tremendo engano. Quando se questiona quantos filhos de cristãos são muçulmanos, ou quantos filhos de muçulmanos são cristãos, tem-se uma clara noção de como o puro acidente geográfico ao nascimento exerce enorme influência na crença religiosa.
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